RESUMO

O objetivo deste artigo consiste em pensar uma forma viável de defender que as práticas homossexuais não violam a Lei Natural. Em Ética filosófica, a Teoria da Lei Natural é uma perspectiva de que a moralidade se baseia nos ditames da razão humana, que são universais e imutáveis e que permitem ao ser humano discernir o certo do errado. Tal teoria tem raízes no naturalismo clássico, concepção que remonta a Aristóteles, segundo a qual a Ética se relaciona com a realização mais excelente da natureza humana em nível operacional. Com base em uma teleologia das funções dos órgãos do corpo, segundo a qual o sexo tem uma função essencialmente procriativa, práticas entre o mesmo sexo foram condenadas como fechando a possibilidade da vida e como antinaturais. No entanto, é possível defender que, para pessoas com uma disposição homossexual, a sexualidade desempenha um papel natural de promoção de intimidade, troca de afetos e contribui para a realização de uma vida de florescimento para essas pessoas.

Palavras-chaves: Teoria da Lei Natural, homossexualidade, Intimidade. 


1. Introdução


  As práticas homossexuais são objeto de controversa discussão moral. As democracias ocidentais têm se desenvolvido no quesito de reconhecer os direitos do casamento entre pessoas do mesmo sexo, incluindo o Brasil (FIGUEIREDO, 2021). Diferentes teorias normativas podem nos ajudar a ver como a homossexualidade não fere nenhum princípio moral relevante. Assim, por exemplo, autores utilitaristas podem pontuar que a permissibilidade das práticas entre o mesmo sexo é coerente com a maximização do bem-estar (SOKOL, 2009) e um deontologista kantiano poderia pontuar que princípios como autonomia podem nos ajudar a pensar que não há contradição entre a vivência homossexual e os princípios éticos, embora o próprio Kant tenha mantido uma visão conservadora a esse respeito (ALTMAN, 2010). O objetivo deste artigo consiste em explorar a possibilidade de que um adepto da Teoria da Lei Natural mantenha a permissibilidade moral das práticas homossexuais.

       A Teoria da Lei Natural tem sido a principal base utilizada por conservadores no Ocidente para apontar algum tipo de imoralidade nas práticas homossexuais (PICKETT, 2004). Devemos, contudo, perguntar: “será mesmo que a condenação da homossexualidade decorre necessariamente da Teoria da Lei Natural?” Este artigo tem como objetivo responder negativamente a essa pergunta, defendendo que, mesmo assumindo a Teoria da Lei Natural, em Ética, é possível defender consistentemente que as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo não são imorais. Não é o objetivo deste artigo refutar alguma teoria jusnaturalista, mas sim apenas esboçar um caminho possível para se defender a permissibilidade das práticas homossexuais mesmo que se adote a Teoria da Lei Natural.  Evidentemente que isso não implicaria que todas as práticas homossexuais sejam moralmente permissíveis, mas pelo menos algumas delas. 

       Para tanto, este artigo discutirá a relação entre Ética e religião, entre homossexualidade e lei natural, o problema da condenação da sodomia e a questão do florescimento humano. Desde já, se reconhece certas limitações dado o escopo deste artigo. Um foco maior será dado à homossexualidade masculina, mas considera-se que as reflexões aqui presentes poderão ser, respeitando certos limites, generalizadas para outras vivências sexuais e de gênero. O artigo também não tem caráter essencialmente apologético ou de refutação, mas sim de mostrar uma viabilidade de defesa de que práticas homossexuais sejam permissíveis mesmo para quem adota a Teoria da Lei Natural. O propósito do artigo, portanto, não é analisar a homossexualidade a partir do direito natural nem refutar jusnaturalistas que condenam a homossexualidade, mas considerar um caminho possível de harmonização entre a Teoria da Lei Natural e a permissibilidade das práticas homossexuais. 

       Na medida em que discussões a respeito da moralidade da homossexualidade tem ganhado destaque nos debates sobre os direitos da comunidade LGBTQIAP+, é importante que se reflita eticamente a respeito deste tema e se considere formas possíveis de repensar maneiras de compreender a sexualidade humana. Embora a Teoria da Lei Natural não esteja necessariamente relacionada com a religião, será discutida a relação entre ética e religião, já que muitas condenações às práticas homossexuais partem de pressupostos religiosos. Assim, busca-se mostrar que a defesa da permissibilidade das práticas homossexuais pode ser mantida mesmo por um religioso que assuma a Teoria da Lei Natural. A fim de posicionar o debate dentro de um contexto histórico, será discutida a condenação da sodomia, termo usado especialmente durante a Idade Média para condenar o homoerotismo. Além disso, será considerada uma maneira de pensar a homossexualidade dentro do naturalismo clássico, partindo do conceito aristotélico de eudaimomia, que pode ser compreendido como “vida boa”, “realização plena” ou “vida de florescimento “. Nas considerações finais, como um adicional, há um esboço de uma sugestão de princípios de ética sexual para futuras reflexões, embora esses princípios não sejam derivados da proposta desde artigo.


2. Ética e Religião


       É comum se argumentar contra a prática da homossexualidade com base no comando de Deus. A homossexualidade seria, para alguns, imoral porque Deus diz que ela é imoral. Qualquer pessoa que tenha apreço, no entanto, por uma moral objetiva ficaria descontente com esse tipo de argumento. Dizer que algo é imoral simplesmente porque Deus assim diz é o que se denomina como Teoria do Comando Divino, que se bem compreendida é uma forma de subjetivismo ético (BONELLA, 2018). A Teoria do Comando Divino comete a falácia de que se algo é um dever então esse algo deve ser um comando, além de tornar a ética arbitrária, já que Deus poderia livremente tornar qualquer coisa certa ou errada. Caso, ao contrário, se diga que Deus baseia seus mandamentos em boas razões, então essas razões é que são o fundamento da moral, não os mandamentos de Deus (SHAFER-LANDAU, 2009).

       Historicamente, no entanto, a posição mais comum adotada por cristãos em Ética é a chamada Teoria da Lei Natural, que tem suas raízes no naturalismo clássico da Ética aristotélica (RACHELS & RACHELS, 2013). Segundo essa visão, a vida ética é aquela que consiste na realização mais excelente de nossa natureza a nível operacional, isto é, funcional. A Lei natural não depende da revelação particular de uma religião para ser conhecida, bastaria conhecermos o constituinte próximo dessa moral (a natureza humana) para que se possa encontrar um fundamento da moralidade (MURPHY, 2019).

      Assim, a construção de um sistema ético objetivo não depende de conhecermos o conteúdo revelacional de uma dada religião. Podemos conhecer verdades morais pelo bom uso da razão prática, por exemplo. As bases do raciocínio moral adequado estão no próprio bom uso da razão natural. Por isso, a Ética, nessa perspectiva, não depende da religião ou da revelação especial para chegar a verdades sobre o certo e o errado. Nesse sentido, a Ética é resguardada como uma disciplina da razão e, assim como seria um equívoco provar mistérios de fé pela razão (o que se chama de “racionalismo teológico”), seria um erro tratar a Ética como uma questão de artigos de fé: “A lei natural, presente no coração de cada homem e estabelecida pela razão, é universal nos seus preceitos e a sua autoridade estende-se a todos os homens. Expressa a dignidade da pessoa e determina a base dos seus direitos e deveres fundamentais” (CIC, 2000, §1956, tradução minha)

       Na verdade, pode-se defender que até um religioso faz bem em adotar como critério a moral baseada na razão natural. Como as religiões têm condicionantes históricos na formulação de seus preceitos morais, pode ser que uma posição moral sustentada por uma religião não esteja correta e com o critério racional de moral, um religioso pode conseguir distinguir o que em sua religião é uma norma ética do que é uma norma condicionada historicamente. Um religioso pode entender que isso não é um problema porque geralmente as posições morais de uma religião não afetam seus dogmas: “Os resultados da investigação moral são neutros sob o ponto de vista religioso. Mesmo que eles possam discordar sobre a religião, os que acreditam e os que não acreditam habitam o mesmo universo moral.” (RACHELS & RACHELS, 2013, p.69).

       Uma pessoa pode se comprometer com todos os dogmas de fé de uma religião, mas avaliar a parte dos preceitos morais dessa religião à luz de um critério ético objetivo fundamentado na razão natural. Pode até ser que uma religião seja infalível em determinar artigos de fé e tenha autoridade sobre preceitos de natureza religiosa, mas como a Ética é questão de razão e não de revelação especial, seria um equívoco fundamentar a Ética na definição de dogmas por uma religião. Mesmo que as posições de uma religião sobre ética possam ser guias importantes, a Ética deve se fundamentar primariamente em boas razões: “a moralidade é, pelo menos, o esforço de guiar a própria conduta por razões – isto é, fazer aquilo que se tem as melhores razões para fazer” (RACHES & RACHELS, 2013, p.25).

       A partir daqui, portanto, deixamos de lado os argumentos religiosos que buscam condenar a homossexualidade. Não podemos dizer que práticas homossexuais são imorais porque certos textos sagrados condenam o sexo entre pessoas do mesmo sexo nem porque uma determinada religião condena as relações homossexuais como pecaminosas. Se queremos de fato discutir moralidade baseada em boas razões precisamos, pois, fundamentar nosso raciocínio em bons argumentos filosóficos. A dificuldade que surge é, no entanto, que os argumentos contra a homossexualidade baseados na Teoria da Lei Natural apresentam-se como baseados justamente na razão e será preciso avaliá-los.


3. Lei Natural e a condenação das práticas homossexuais. 


       Um argumento tradicional contra as práticas homossexuais baseia-se justamente na lei natural. Argumenta-se que os atos homossexuais contradizem a finalidade natural do sexo, que deve ser reservado ao contexto do matrimônio e que a cópula deve ter primariamente um fim reprodutivo. Consequentemente, os atos entre homens e homens ("sodomia") seriam contrários à finalidade operacional dos órgãos genitais. Argumenta-se, ainda, que o sagrado matrimônio é uma instituição natural que é o lugar apropriado do sexo procriativo e que disso se segue que uniões homossexuais devem ser condenadas:


Conforme a doutrina da lei natural, sustenta-se que a redescrição do casamento enquanto instituição jurídica aberta a pessoas do mesmo sexo é inadequada e incorreta... trata-se de um equívoco, dada a realidade da associação humana que é o casamento, configurando descompasso com os bens humanos básicos percebidos pela razão prática, em prejuízo ao florescimento humano, por fragilizar a instituição do casamento, estimular trajetórias de vida incapazes da associação típica, necessária e valiosa do casamento enquanto comunidade familiar baseada na união biológica (heterossexual, permanente e procriativa), tudo sem esquecer as consequências para a educação de crianças e adolescentes (RIOS, 2018, p.12)


       Precisamos, no entanto, perguntar: será mesmo que as práticas homossexuais são contrárias à lei natural? Algumas distinções poderiam ser úteis, como diferenciar pensar a lei natural em seu aspecto moral ou em seu aspecto político. O foco deste artigo é a dimensão ética da lei natural, embora as questões consideradas aqui tenham implicações para a dimensão política. Há diferentes formas de defender que o ato sexual entre pessoas do mesmo sexo não contradiz a lei natural mesmo quando não envolve fim reprodutivo se ele for realizado com algum outro fim natural que também é próprio do ato sexual, como é o caso do fim de estabelecer uma intimidade recíproca de toque prazeroso e fortalecer os vínculos de amor ou realizar, para usar uma expressão de Roger Scruton (2016), uma união pessoal intencional. Ou seja, podemos entender que o fim natural da sexualidade humana não é essencialmente a procriação, mas a ligação de pessoas que intencionalmente se unem em uma forma especial de intimidade e amor 

        Vale lembrar que dificilmente alguém proibiria atos sexuais entre um homem e uma mulher estéril ou que já passaram da idade reprodutiva, justamente porque se reconhece que o sexo também cumpre uma função de fortalecimento de vínculos afetivos:


A sexualidade se manifesta de diferentes maneiras. Além da heterossexualidade, algumas pessoas são naturalmente inclinadas a outras orientações sexuais, como a homossexualidade e a bissexualidade. Algumas pessoas buscam não apenas relações sexuais, mas também amor, ternura e carinho com pessoas de sexo diferente ou do mesmo sexo que o seu. Este é um fato empírico e precisa ser adequadamente interpretado. Nada na razão pode dizer que as relações entre pessoas do mesmo sexo são “erradas” ou que “ofendem um bem humano básico” – simplesmente porque não faz sentido exigir que as pessoas se comportem de forma diferente das suas próprias inclinações. (LAGO, 2018, p.1061).


       Embora Lago (2018) fale de inclinações, defenderei mais adiante que orientação sexual é mais propriamente uma disposição ou conjunto de disposições psicológicas. A orientação sexual não é como estar inclinado a uma prática e devemos reconhecer que podemos ter inclinações para práticas imorais. A orientação sexual é mais do que uma mera inclinação, ela é uma característica marcante e inerente de uma pessoa. Para uma pessoa que não é homossexual pode ser difícil compreender isso, embora a experiência fenomenológica em primeira pessoa de um homossexual dê testemunho da homossexualidade muito mais como um modo de ser do que como uma mera inclinação ou tendência. Como as pessoas homossexuais são atraídas somente pelo mesmo sexo como algo intrínseco ao ser delas, o fato de pessoas homossexuais realizarem o ato sexual com base nesse fim natural da intimidade, do toque e da troca de afetos não parece ser algo contra a natureza.

       Mesmo que alguém assuma a ideia de que o casamento é uma instituição natural que existe para fins reprodutivos, isso não impediria a legitimidade de uniões afetivo-sexuais com outros fins. Os atos homossexuais, mesmo sem fins reprodutivos, podem continuar sendo naturais, pois cumprem o fim do toque recíproco e da intimidade que é o único tipo de união sexual para o qual homossexuais por suas próprias disposições naturais estão direcionados. Podemos entender que, em sentido mais amplo, o fim natural da sexualidade humana é a união pelo qual duas pessoas se conectam em um ato de amor e isso independe de gênero. 

      É possível que as pessoas em grande parte da história que condenaram atos homossexuais como antinaturais não tivessem ainda clareza de quão constitutiva é a homossexualidade e o quanto ela é um traço intrínseco e inerente a uma pessoa. Isso ocorre porque o conceito de homossexualidade como um “tipo de pessoa” é uma noção recente. Depois, claro, quando se compreendeu melhor isso, começou-se a se falar que a própria natureza dessas pessoas era desordenada, o que é circular: “Um exemplo da categoria de ‘tipo humano’ seria a criação da pessoa do... homossexual, em determinado momento histórico. No caso do ‘homossexual’, trata-se de pensar que certo comportamento sexual (dentre tantos outros possíveis) passou a definir um tipo humano (a partir do fim do século XIX).” (ZANELLO, 2018, p.27)    

      Hoje compreendemos que homossexuais possuem uma disposição intrínseca à sua constituição de se voltarem para um tipo de intimidade homoerótica. Sendo esse o caso, o uso dos genitais para realização desse fim de intimidade e união intencional é um uso que realiza uma função também natural dos genitais. Assim, os atos homossexuais realizados por essas pessoas não são antinaturais, mas cumprem uma função natural do sexo para essas pessoas, que é a realização de um tipo de união íntima profunda e adequada à constituição dessas pessoas. No passado, no entanto, o termo utilizado para condenar, entre outros, atos entre o mesmo sexo era a “sodomia” e será importante considerar a questão em torno dessa condenação.


4. A condenação da sodomia 


      O termo “sodomia” se originou do termo referente à cidade bíblica de “Sodoma”, que foi erroneamente associada à homossexualidade. Na realidade, de acordo com a narrativa bíblica, Sodoma foi uma cidade caracterizada pelo ódio aos estrangeiros e tinha como um de seus costumes, a prática do abuso sexual contra forasteiros como uma forma de humilhação. Assim, que os habitantes de Sodoma no mito bíblico tenham ameaçado abusar sexualmente de dois anjos em forma humana que entraram na cidade nada tem a ver com a homossexualidade, mas sim com o ódio aos estrangeiros (Gênesis 19, BÍBLIA, 2002). Se o sentido do mito fosse entendido corretamente, deveríamos chamar de sodomia o ódio ao diferente, contudo, na Idade Média, o termo acabou, por uma incompreensão da narrativa, a ser usado como condenação, entre outras coisas, do comportamento sexual entre dois homens:


Por onde, entre os vícios contrários à natureza, o lugar ínfimo ocupa o pecado da imundícia, que não implica o conúbio com outra pessoa. Gravíssimo, porém é o pecado da bestialidade, cometido com um ser de espécie diferente. Por isso, àquilo da Escritura. – Acusou seus irmãos de um enorme crime – diz a Glosa, que tinham congresso com os animais. Depois deste vem o vício sodomítico, que consiste na relação com pessoa do mesmo sexo. (AQUINO, 2017 Suma Teológica, IIa IIae parte, Questão 154, artigo 12).


      Desse modo, a condenação dos atos homossexuais às vezes aparece como uma condenação ao que se denomina como “sodomia”. Embora historicamente alguns pensadores, mais particularmente os cristãos, tenham condenado a sodomia, é importante reiterar que ainda não se tinha uma compreensão adequada de que o que se chamava de sodomia poderia ser, na verdade, a expressão de uma disposição íntima à constituição do ser de algumas pessoas. Dado isso e que o conceito de homossexualidade é recente, é possível defender que a condenação da sodomia não implica em condenação das práticas homossexuais. 

      Consideremos, pois, mais de perto a distinção entre sodomia e atos homossexuais. A Igreja Cristã historicamente condenou a sodomia, mas foi só com a Modernidade que se pode falar de uma condenação da homossexualidade. A sodomia era entendida como qualquer comportamento sexual não-reprodutivo, e poderia incluir a masturbação, a bestialidade e o sexo anal mesmo entre heterossexuais (CORREIO & CORREIO, 2016). Assim, condenar a sodomia não é o mesmo que condenar a homossexualidade. Desse modo, seria um erro de raciocínio aquele que fez, por exemplo, a Igreja transformar a condenação da sodomia (que poderia até ter um sentido correto) em condenação de atos homossexuais como antinaturais (o que é uma transposição incorreta). Este artigo busca justamente defender que podem existir razões suficientemente fortes para não condenar atos homossexuais como antinaturais e, se esse for o caso, atos homossexuais não são necessariamente sodomia.

     Também é importante dizer que a homossexualidade pode ser entendida como uma disposição psicológica fortemente constitutiva do modo de ser de uma pessoa, independente da gênese dessa constituição. Assim, quando nos referimos a alguém como “homossexual” estamos usando o que Gilbert Ryle (2009, p.107) denomina como um conceito disposicional, isto é, um que se refere a “declarações no sentido de que uma coisa mencionada, animal ou pessoa, tem um certa capacidade, tendência ou propensão, ou está sujeito a uma certa suscetibilidade”. O tipo de disposição que é a homossexualidade seria, ainda, distinto de disposições que são meras inclinações ou tendências. Desse modo, a homossexualidade não é uma mera tendência ou inclinação, mas uma disposição ou um conjunto de disposições psicológicas que caracterizam um determinado tipo de pessoa.

       A disposição homossexual, ante o insucesso das terapias de conversão sexual, tem se revelado um traço muito forte e, na maioria das vezes, inalterável de uma pessoa, independentemente de como se estabelece (HALDEMAN, 2005). Trata-se de uma disposição ou conjunto de disposições psicológicas que vão muito além de só uma questão sexual. É um traço marcante da pessoa como um todo. Ao invés de dizer que tais pessoas estão condenadas a nunca poderem expressar essa disposição tão constitutiva de seu ser, parece muito mais adequado dizer que a realização da intimidade homoerótica é sim um fim natural adequado para tais pessoas.

       A condenação da chamada “sodomia” foi, no entanto, ancorada sob o argumento da teleologia natural dos órgãos corporais. Assim, cada órgão possui uma função. O olho nos permite ver, a boca serve para nos alimentarmos e, nessa teleologia, os órgãos genitais servem à reprodução. É verdade que os genitais têm uma função reprodutiva, mas para condenar atos homossexuais seria preciso que essa fosse uma função exclusiva ou necessária deles. Os genitais têm uma função também de realizar um tipo de intimidade profunda entre duas pessoas, daí que não proibimos atos sexuais a estéreis ou pessoas além da idade reprodutiva. Reconhecemos que o ato sexual também tem uma função natural relacionada a um vínculo de intimidade para aqueles que, dada sua constituição, não podem reproduzir.

      Dizer que práticas homossexuais são antinaturais seria parecido com dizer que usar a mão para dar tchau é antinatural porque a função natural da mão é pegar coisas; ou que mascar chicletes, fumar ou beijar são errados porque a função natural da boca é comer. Alguns talvez ainda digam que a ejaculação só pode ocorrer para fins procriativos, mas é importante ter em mente que a ejaculação é um subproduto do ato sexual e não aquilo que é visado como fim pelo ato. Ademais, se a ejaculação pudesse ocorrer só quando está aberta à possibilidade de procriação, um homem não poderia ter relações sexuais com uma mulher estéril ou além da idade reprodutiva. É curioso notar que essa inflexibilidade sobre a teleologia dos órgãos parece recair exclusivamente para o caso dos órgãos sexuais (PICKETT, 2004).

       Outros poderiam argumentar que um suposto encaixe biológico natural entre o órgão genital masculino e o feminino são necessários para o ato sexual, mas nesse caso claramente se comete a chamada falácia de Hume, que ocorre quando derivamos uma regra sobre como as coisas deveriam ser de uma mera descrição de como as coisas são (GIAROLO, 2013). É importante não confundir a falácia de Hume com a falácia naturalista de Moore, que consiste em definir o bem em termos de propriedades não-morais ou que não sejam o próprio bem. A Teoria da Lei Natural poderia incorrer na chamada falácia naturalista a depender de como é formulada (MOORE, 1903), mas não está no escopo deste artigo lidar com essas dificuldades.

      Ao invés de falar de órgãos genitais, seria possível falar de uma teleologia das zonas erógenas do corpo. Daí fica mais claro que os órgãos genitais não são só parte do aparelho reprodutivo, mas também possuem uma função como parte das zonas erógenas, que concorrem em realizar o fim de uma intimidade de toque e afeto. Desse modo, fica claro porque a estimulação dessas zonas ainda está cumprindo uma função natural e até fisiológica dentro da teleologia das funções dos órgãos do corpo mesmo quando não estamos falando de procriação. O próprio fato de o ânus ser uma zona erógena deveria nos fazer pensar que ele também possui a função natural de experimentar prazer sexual.


5. Homossexualidade e florescimento humano (eudaimonia)


       No naturalismo clássico que se origina na ética aristotélica, o fim supremo da da vida ética é o florescimento humano, que é a vida de realização plena dentro de uma estrutura organizada de meios e fins. O sofrimento psicológico vivenciado por homossexuais que tentam reprimir sua sexualidade e identidade revela que uma pessoa com disposição homossexual no geral não consegue ter uma vida satisfatoriamente feliz se viver tentando renunciar às expressões dessa disposição:


O que dizemos sobre a perícia política é o que ela visa atingir bem como sobre qual será o mais extremo dos bens suscetíveis de ser obtido pela ação humana. Quanto ao nome desse bem, parece haver acordo entre a maioria dos homens. Tanto a maioria como os mais sofisticados dizem ser a felicidade, porque supõe que ser feliz é o mesmo que viver bem e passar bem. (ARISTÓTELES, 2009,1095a18, p. 20)


        Homossexuais não têm todos um “dom para o celibato”, por exemplo, nem podem encontrar uma vida sexual satisfatória no sexo heterossexual. Se a ética deve nos mover a uma vida de florescimento (eudaimonia), então negar aos homossexuais a vivência de sua sexualidade, é fechar, ao menos para a maior parte deles, de antemão a possibilidade de uma vida de florescimento. Alguns dizem erroneamente que os atos homossexuais fecham o homem à vida quando na verdade é a condenação da homossexualidade que fecha para algumas pessoas a possibilidade de uma vida de realização.

         Se a vivência homossexual para essas pessoas está a serviço de uma vida de florescimento, então condenar os atos homossexuais dessas pessoas como antinaturais seria um contrassenso, pois o florescimento é o fim maior para o qual existimos e para o qual devemos ordenar todos os demais fins. Mesmo que encontrássemos diversas razões supostamente éticas para condenar as práticas homossexuais, todas elas teriam de ser sobrepostas pela razão maior da ética que é o florescimento humano: “A eudaimonia é a finalidade última a que todas as nossas ações humanas devem procurar” (COSTA, 2014, p. 165).

       O florescimento (eudaimonia) consiste, para Aristóteles, na atividade da alma racional de acordo com a excelência (areté) tanto moral como intelectual. Entre as virtudes intelectuais podem ser distinguidas aquelas relacionadas à atividade teórica (sophia) e à atividade prática (phronesis). A atividade teórica supera as demais em dignidade, pois nos aproxima mais de Deus, aquele que sempre pensa a si mesmo. Por isso, a vida contemplativa ou teorética é a que mais aproxima o ser humano de Deus. Há eudaimonia tanto na vida dedicada às virtudes intelectuais quanto na dedicada às virtudes morais, no entanto, a vida contemplativa é mais digna (ARISTÓTELES, 2009).

        Aristóteles considera que a virtude é resultada do hábito, que consiste em sentir e desejar corretamente. O hábito é o processo inicial de formação da virtude, constituindo em afecções e desejos corretos apropriados ante o que cada situação exige. O filósofo observa, ainda, que “nenhuma virtude moral se engendra em nós por natureza” (EN, II.1, 1103a18, ARISTÓTELES, 2009). Assim, a virtude não decorre de uma tendência significativa de nossa natureza para a ação virtuosa. É o hábito que origina as virtudes e as aperfeiçoa. O hábito possibilita a formação da héxis (disposição, habilitação), que é o estado de estar em posse de uma da competência moral: “é preciso que as atividades exprimem vc certas qualidades, pois as disposições seguem as diferenças das atividades” (EN, II.1, 1103b23, ARISTÓTELES, 2009).

      Partindo da própria ética das virtudes de Aristóteles, pode-se defender que o que se exige da vida sexual é que ela seja virtuosa e, se podemos falar de uma virtude da castidade, poderíamos dizer que ela nada tem a ver com orientação sexual, que ser casto não é senão viver uma vida sexual com moderação e prudência nos usos dos prazeres. Mesmo a palavra sodomia poderia ser ressignificada para falar de um uso irracional dos órgãos genitais, que não estaria vinculado a nenhuma orientação sexual específica. Desse modo, a sodomia seria o uso da sexualidade de modo imprudente, vicioso ou não-virtuoso, e qualquer pessoa, seja ela heterossexual ou homossexual, poderia incorrer nisso.


6. Considerações Finais


       Embora não tenha sido propósito deste artigo discutir isto e a proposta deste artigo não dependa disto, pode-se esboçar certos critérios de Ética sexual que combinem elementos sobre o valor da autonomia presente na ética kantiana, o valor de uma vida virtuosa presente na ética aristotélica e princípios relativos à beneficência e malefícios presentes na ética utilitarista. Isso permitir-nos-ia dispor de critérios objetivos de moralidade sexual que podemos defender como baseados na razão natural e, por isso, coerentes com a lei natural. Uma proposta inicial, aberta a futuras investigações e reformulações, poderia ser algo como:

Uma prática sexual é moralmente permissível se e somente se preenche todos e somente a estes seguintes critérios: (1) as pessoas envolvidas dão consentimento livre e esclarecido ao ato, sendo que (1.1) esse consentimento é atual (presente) e contínuo (o que significa que não existe consentimento de sexo definitivo antecipado e que a pessoa pode desistir do sexo ou de certas práticas nele a qualquer momento do ato); (1.2) o parceiro tem adequada informação relevante sobre as implicações do ato sexual (exemplo, não há enganação ou omissão por parte do parceiro de informações relevantes, como informações relevantes sobre idade); (1.3) as pessoas envolvidas têm capacidade psíquica suficiente para dar um consentimento deliberado e razoável ao ato sexual (o que exclui animais, crianças, adolescentes, pessoas com transtornos mentais em condição de comprometimento de suas capacidades deliberativas etc.); (1.4) que as pessoas envolvidas tomem a decisão de se envolver no ato sexual livre de coerção, manipulação ou indução indevida (o que exclui casos de abuso sexual) ; (1.5) as pessoas envolvidas não estejam em um estado psicológico que as impede de dar consentimento livre e esclarecido (exemplo: não estejam em embriaguez ou sob efeito de alguma substância psicoativa que compromete sua capacidade deliberativa); (2) que o ato sexual não resulte em dano significativo para os envolvidos ou terceiros (exemplo: não há mutilações de membros do corpo ou práticas de sadismo perigosas); (3) que o ato sexual em questão faça parte de uma vida sexual virtuosa marcada pela prudência, moderação no uso dos prazeres e respeito ao outro e; (4) que o ato sexual não seja parte de algum comportamento que seja errado por questões morais não necessariamente sexuais (exemplo: quebra de promessa ou voto de compromisso de namoro ou casamento, por exemplo).

       Poderíamos também dizer que atos sexuais são permissíveis se cumprem esses critérios, mas que a vida sexual encontra sua realização mais nobre no contexto do amor, da união intencional interpessoal em conformidade com a orientação sexual própria daqueles que se unem. O fim natural do sexo é justamente o amor, a união íntima e profunda entre duas almas que se tocam. Por alguma razão, algumas almas estão dispostas construtivamente a uma determinada orientação a pessoas de um gênero específico e a sexualidade, no seu fim próprio, se dá na realização do tipo de amor consistente com essa constituição. 

     Este texto pretendeu mostrar, portanto, que uma pessoa pode adotar a Teoria da Lei Natural e manter que atos homossexuais não contradizem essa lei. Argumentei, ainda, que a Ética deve se basear na razão natural e que ela deve ser a régua para podermos distinguir nos preceitos morais de uma religião o que é uma posição moral objetiva do que é uma posição moral condicionada historicamente, até porque a condenação da homossexualidade não parece ser relevante em nada para a verdade dos dogmas de qualquer religião.

       É claro que alguém pode só abandonar a Teoria da Lei Natural, mas para alguém que está fortemente convencido do naturalismo clássico e da verdade dessa teoria, tal pessoa não precisa necessariamente concluir daí que a homossexualidade é antinatural. Mostrar que há essa possibilidade como algo razoável foi o propósito deste artigo. Portanto, o propósito central do artigo não foi criticar condenações jusnaturalistas à homossexualidade nem dizer que a permissibilidade moral da homossexualidade segue-se necessariamente da Teoria da Lei Natural, mas esboçar uma possibilidade de defesa de que atos homossexuais sejam permissíveis mesmo se assumirmos a Teoria da Lei Natural.

          O que este artigo buscou mostrar, portanto, é que da Teoria da Lei Natural não se segue necessariamente a condenação da prática da homossexualidade. Alguém poderia, ainda, concordar com a condenação da sodomia (reinterpretando o sentido da palavra), da luxúria, defender a castidade, afirmar que o matrimônio heterossexual é uma instituição natural e que dentro desse matrimônio o sexo heterossexual tem uma importante função reprodutiva, sem ter que concluir daí a condenação das práticas homossexuais quando servem ao fim de promoção do amor e da intimidade entre pessoas com uma orientação não-heterossexual.

        Este artigo, contudo, enfrenta uma limitação. Seria preciso ainda explorar como as reflexões elencadas aqui poderiam ser generalizadas para outras orientações sexuais dissidentes, como é o caso da bissexualidade. Além disso, pesquisas futuras podem ampliar as discussões presentes aqui para pensar como a transexualidade, por exemplo, não necessariamente apresenta uma violação à lei natural. Outra discussão relevante diz respeito à esfera política. Esse artigo lidou mais especificamente com o aspecto moral da sexualidade, mas seria preciso pensar como fundamentar, mesmo a partir da lei natural, direitos políticos para a comunidade LGBTQIA+, como é o caso do direito ao casamento e à adoção por parte desse grupo. Há, pois, um campo aberto a ser explorado em investigações futuras.

       Além disso, esse artigo teve como limitações, também não discutir melhor as teorias jusnaturalistas ou de direito natural, nem fazer uma crítica mais abrangente aos argumentos jusnaturalistas contra a homossexualidade ou a algum teórico específico sobre o assunto. Contudo, isso se dá porque o escopo do artigo é mais fazer um esboço de uma proposta de como manter uma defesa de que atos homossexuais não são imorais e ao mesmo tempo adotar a Teoria da Lei Natural. Essa limitação pode tornar os argumentos presentes aqui mais abertos a objeções, mas desde que se mostre a viabilidade racional de uma defesa da permissibilidade moral das práticas homossexuais dentro de uma perspectiva que adote a Teoria da Lei Natural, este artigo terá cumprido seu propósito.


REFERÊNCIAS


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